No filme Tempos Modernos, de 1936, Charles Chaplin mostrou ao mundo como a revolução industrial havia mudado não apenas o modo de produção material, mas também as formas de pensar, agir, andar e (não) falar. A esteira de produção criou homens especializados em funções repetitivas. O risco era o confinamento: trancados em uma função metódica e isolada, os sujeitos passavam a entender de apertar botões e parafusos, mas não de fabricar sapatos, roupas ou outros tipos de acessórios.
O mecanismo desobrigou o operário a entender a história, o historiador de entender o corpo humano, o médico de entender a filosofia, o matemático de entender as letras jurídicas. O modo dessincronizado de produção influenciou, assim, a organização do conhecimento. Nas universidades, a hiperespecialização deu forma a sujeitos curiosos, como especialistas em gramática que não entendem de literatura. Nos jornais, a divisão de cadernos criou editores de economia ignorantes do endereço do teatro, e repórteres de política sem qualquer estimulo para abrir o caderno de ciência.
O auge dessa organização científica talvez tenha sido a experiência nazista. A separação de atribuições bem definidas possibilitou a um país inteiro participar de um processo sem saber exatamente do que se tratava. Maquinistas levavam judeus até os campos de concentração, carcereiros cuidavam dos prisioneiros, administradores cuidavam das instalações hidráulicas. A ordem era cumprir ordens e apertar os botões (do vagão, das grades, dos chuveiros), e não matar ninguém. O pano de fundo era a obsessão em transformar seres humanos em uma espécie de tabela periódica. Daí a separação por raças puras. Todos e ninguém eram culpados pelo que acontecia.
Chaplin não é um gênio à toa: num mundo onde a ordem era entender muito sobre pouco, ele conseguiu captar o contexto e antever suas consequências – inclusive do nazismo em seu auge.
No mundo atual, temos muitos operadores de botões e poucos Chaplins. Vivemos uma arrastada transição entre os tempos moderno e os tempos pós-moderno. Se antes a ciência nos prometia a ordem e o progresso, hoje ela está em xeque. Conhecer muito sobre pouco já não produz bem-estar.
Entender contextos, relacionar eventos, construir referências, antever problemas e negociar consensos são alguns dos principais desafios do homem pós-moderno. Essas características são cada vez mais valorizadas por empresas, escolas e pela administração pública. Ao fim dessa transição, é possível prever que o presidente de uma empresa de computadores estará fadado ao insucesso se entender apenas de computadores. Será preciso entender culturas, codificar valores, prever impactos (sociais e ambientais) e construir relações claras de confiança com seu público. Quem entender o computador como um produto não terá entendido quase nada.
A compreensão de causas e consequências de ações humanas aparentemente isoladas é, portanto, condição essencial para conhecer os rumos na nau, e não apenas permanecer nela. Chegar a ela requer um volumoso investimento para aprimorar não apenas capacidades padronizadas, mas sensibilidades pessoais. Até lá, a disposição de relacionar alhos com bugalhos será sempre tentadora.
Na última quarta-feira, publiquei, neste blog, um pequeno comentário a respeito da infeliz declaração de Renato Aragão sobre um suposto melindre, supostamente inexistente tempos atrás, de negros e gays a piadas contra minorias. Defendi, como defendo, que a piada tenderia a perder a graça à medida que os retratados expusessem um incômodo antes reprimido pela conveniência. Retratar, afinal, um negro como macaco é tirar dele a sua humanidade, e isso não tem a menor graça. Não provoca, não educa, não esclarece, não constrange. Só humilha. O mesmo com as piadas sobre gays. Sobre uma suposta baixa vocação intelectual de mulheres. Em todos esses casos, não se trata de piadas sobre hábitos, estruturas de poder ou vícios sociais. São apenas ofensas, e o direito de se sentir ofendido e combater a chacota na base do argumento tem o mesmo fundamento da liberdade de quem o expressou. Ponto.
Quando terminei o texto, soube, pela internet, dos ataques ao jornal Charlie Hebdo, em Paris. Na ação, 12 pessoas, entre elas o editor-chefe do semanário e três de seus mais importantes ilustradores, foram assassinadas por extremistas.
Um ato terrorista é, em qualquer ocasião, um curto-circuito sobre qualquer sentido. Embora se utilize de métodos racionais de operação, com metas, planos e riscos calculados, é a irracionalidade manifestada por quem já se desapegou da realidade. Nessa realidade paralela, demônios são combatidos a partir de uma construção mitológica desvirtuada. Em nome da honra se consagra a covardia.
Mas, num mundo ainda carente de compreensão de contextos, tomado pelos especialistas em parafusos de sempre, a ação terrorista logo resultou em novas insanidades, entre as quais a islamofobia típica de quem se nega a entender um ato de insanidade como ele é: um ato de insanidade.
Por aqui, a tentação de ligar pontos desconexos (a mesma que, ignorante de contextos, usa expressões como bolivarianismo, comunismo e fascismo como muleta para expressar qualquer crise relacionada às tomadas de três pontas) venceu o bom senso e saiu por aí distribuindo ofensas à inteligência. Primeiro, com a velha islamofobia. Depois, com a apressada condenação a todas as religiões – como lembrou a amiga Cynara Menezes, oito em cada dez pessoas no mundo se dizem religiosas; pelo raciocínio dos apressados, oito em cada dez pessoas no mundo são também potenciais terroristas. Em seguida, vi gente citar a ação terrorista como uma reação compreensível diante de uma provocação barata: a caricatura de Maomé.
A mistura de alho com bugalhos era tamanha que, ao fim do dia, aconteceu o esperado: houve gente que conseguiu ver nas críticas ao humor politicamente incorreto um verdadeiro empurrão para atos terroristas como o ocorrido em Paris. Estes foram capazes de colocar as minorias que lutam pelo direito de não serem destroçadas (pela humilhação do tapa ou do riso) na mesma baia dos assassinos de Paris. Tente entender o raciocínio do leitor abaixo:
“Primeiramente o ser humano e preconceituoso por natureza.Por que sao o msm tipo de pessoa. O movimento Feminista e o movimento LGBT -o que nada tem aver com o as mulheres o os gays- são formados com pessoas com os msm problemas cognitivos , que passaram por uma lavagem cerebral cheios de ideologia. Vc tem alguma duvida que as pessoas desses movimentos sao capazes de pegar em armas ? A diferença que os ofendidos brasileiros leram gramsci!”.
Feministas. Em. Armas. O sujeito, ao que parece, é universitário que dentro de alguns anos estará babando na gravata. É típico o sujeito moderno patinando na pós-modernidade. Esse sujeito é uma multidão.
Ao fim do dia, os fanáticos de sempre, que usam púlpitos religiosos e publicações de gostos duvidosos para espalhar o mais ardiloso obscurantismo autodenominaram-se possíveis alvos de versões locais de terroristas – curiosamente, e não por acaso, os que hoje reagem aos pontapés a décadas, séculos de exclusão. Os candidatos a mártires são os mesmos que minimizam a barbárie e dizem ser compreensível amarrar jovens em postes, incitar estupro contra mulheres ou linchar suspeitos sem direito a julgamento. Era preciso uma dose extra dose de má-fé e desconhecimento para lançar o obscurantismo no colo de quem busca arejar o ambiente. Mesmo assim, muitos tentaram. E seguem tentando. (Em tempo: o amigo James Cimino escreveu sobre o tema AQUI)
Antes que prossigam com suas cruzadas pessoais, porém, é bom que fique claro: satirizar um sistema, seja ele político ou religioso, não é o mesmo que satirizar a condição humana. São sátiras bem diferentes: uma pode ser refinada e outra, de mau gosto, mas ambas são passíveis de responsabilização (para isso os homens inventaram as leis). É custoso dizer o óbvio, mas liberdade não é um tijolo que opera em uma única direção. Ela pressupõe o direito de publicação e o direito de fazer contrapontos. Um ato terrorista não é nem uma coisa nem outra. É só insanidade – e esta não se combate com relincho.
Deixe um comentário